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P A L A V R A  C O M  P O E T A  D E N T R O


É o inconcebível infinito o seu puro nada
que nas palavras ressoa com a incandescência do ser
António Ramos Rosa


Nenhuma realidade nos é dada fora da palavra que a nomeia. Isso não confere às palavras nenhum estatuto angélico. Pelo menos, aos olhos do meu caro António Ramos Rosa. Nunca as palavras lhe foram, como para outro grande poeta e amigo, aquelas “moradas de cristal” onde a música das coisas vem pousar como uma pomba. Para ele as palavras serão um pouco como aquele dedal de matéria negra de densidade infinita que os físicos atribuem aos “buracos negros” onde a luz do universo se afunda. É preciso lutar, sem fim, com a sua real obscuridade para recuperar mais fundo a luz nelas concentrada e perdida. Toda a poesia de António Ramos Rosa, a partir do momento em que abandona o conforto do poema como espelho da aparência exterior e suas seduções, vive deste esquizofrénico combate com a matéria mesma do poema, fulminada do interior pelo sentimento do excesso do real, mas mais ainda pela sua originária incapacidade de dizer o que diz.

Onde Pessoa acaba, começa Ramos Rosa. Deve-se a António Ramos Rosa, no papel de garoto de Andersen, a observação de que a labiríntica poesia de Pessoa era, no final das contas, excessivamente inteligível. Não sei se nesta óbvia (mas não para toda a gente) observação, há ecos do diálogo que toda a sua vida manteve com o nosso comum amigo Vergílio Ferreira. Mas no que sob a pena do autor de Para Sempre relevava da polémica contra o transcendente “mistério-Pessoa”, em Ramos Rosa procede de uma intuição e de uma experiência capital de poeta confrontado com a obscuridade e a infinita tautologia da Palavra.

A essência da palavra é o que esconde, o seu corpo de sombra, não o que revela. Pessoa percorrera, como ninguém, as aporias de uma palavra poética que não abdica de penetrar e ser o lugar onde “o sentido” do universo se manifesta. A sua palavra poética vive e morre da vontade de circunscrever o espaço de sonho que separa ou une o Absoluto e o Nada. A sua visão e a sua aura consistem em dar um corpo de imagens e de metáforas a esta Busca do que segundo ele mesmo, se não encontra. A fulgurância do Real é inata na pupila, na imaginação, na palavra de Ramos Rosa. É o seu excesso que o fascina e o destrói. Nada há de mais claro neste poeta do nosso Sul que o muro branco, a cal, a luz que os des-realiza. Obscura, impenetrável, anti-matéria dessa matéria fulgurante que nós vemos e nos vê, é a palavra poética que não pode substituir o real mas não pode ofuscar-se diante dele sob pena de não existir. Entre a “Palavra e a Coisa” – e não é um acaso que tenha sido Ramos Rosa o tradutor do memorável ensaio de Foucault – se abre aquele espaço que durante toda a sua vida tem oferecido aos desvelos do autor de “Animal Olhar” uma inesgotável fonte de perplexidade e de inspiração. O clássico caminho da metáfora não era o que se impunha para sobrevoar este campo minado.

A Palavra sobre o mundo, a palavra sobre a palavra onde o mundo se diz e se perde, foram sempre a sua obsessão, fascínio e martírio indissociáveis. Poesia da reiteração infinita, alguns a encontrarão monótona ou imóvel, mas esse é o preço da fidelidade à essência mesma de uma visão poética que tem como horizonte uma Palavra que, por definição, é, sem fim, o som e o eco de si mesma. Com um Poeta dentro. Um grande Poeta.


22 de Setembro de 1999

Eduardo Lourenço


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A POESIA E O POÉTICO

 

 

«Há sempre uma não coincidência entre o espírito absoluto e a sua expressão»

Hegel

 

Qualquer grande livro de poesia é, inevitavelmente, uma reflexão sobre o poético porque a escrita poética, por mais próxima que esteja do mundo das coisas, implica um afastamento essencial, uma suspensão da vivência das coisas na sua aparente imediatidade, o que implica um simultâneo enriquecimento e empobrecimento. O poeta sabe disso e mesmo que não seja essa a sua intenção primordial, a sua escrita manifesta esse deslocamento. Por isso, toda a poesia é da ordem do problemático e a relação do poeta com a sua obra é um elemento

intrínseco à própria obra, ainda que esta relação possa ocorrer de múltiplas maneiras, incluindo a sua voluntária recusa.

A interrogação acerca do que pode ser o poético (não tanto a poesia que é apenas uma das formas possíveis do poético) permanece, por conseguinte, uma questão essencial que é recolocada pelo simples acto de escrever, pelo menos quando essa escrita não se aconchega na «literatura», isto é, na procura obstinada de ‘efeitos literários’.

Estes dois livros de Ramos Rosa e de Maria do Rosário Pedreira têm a incomparável virtude de se afastarem do literário aproximando-se, por isso, da sua própria essencialidade.

 

Mas o que pode aproximar estes dois livros tão diferentes, para além da quase coincidência temporal da sua publicação e desta atitude em relação ao ‘literário’? Diria que o que os une é o registo ontológico em que se desenvolvem e, no interior deste, uma ontologia do vazio ainda que diferentemente interpretada. Liga-os, ainda, a importância concedida à palavra, embora também neste caso, ela ocupe distintos lugares no interior das respectivas mundivisões.

Existe ainda uma outra razão para que fale, conjuntamente, destes dois livros.

É que ambos foram, para mim, o revisitar de antigas revelações. Ramos Rosa foi, de todos os poetas portugueses, aquele que mais marcou a minha experiência da poesia, num grau só comparável aos casos de Rilke ou de Hölderlin. Durante um certo tempo mantive-me, no entanto, relativamente afastado desta poesia de tal modo que a leitura de O Aprendiz Secreto constituiu o revisitar de uma antiga paixão.

Quanto a Maria do Rosário Pedreira, não posso nunca esquecer a profunda emoção que senti, em plena livraria, ao ler o poema da contracapa do seu primeiro livro de poesia, A Casa e o Cheiro dos Livros (Quetzal, 1996) que permanece, até hoje, um dos textos poéticos de que mais próximo me sinto. Lembro-me também de ter, então, dito à autora que um dia escreveria

sobre ela. Eis-me, pois, a cinco anos de distância, a cumprir essa promessa.

 

Mestria e pacificação

O livro de Ramos Rosa revela a mestria de alguém que há cinquenta anos escreve mantendo toda a sua força criadora e toda a profundidade de uma expressão que sem abandonar o seu espaço privilegiado, a palavra, se ergue ao nível cósmico, à relação mais íntima entre a palavra e o cosmos reflectindo os mecanismos de criação poética na sua ambivalência expressiva e cósmica e, ao mesmo tempo, na sua extrema (e absolutamente necessária) solidão. É toda a infinita sabedoria do poeta que se manifesta neste livro, todo ele feito à volta da ideia de construção. Mas manifesta, simultaneamente, aquele grau de sublimidade que lhe permite

escrever «Não é altura de afirmar nada. Tudo deve permanecer oculto na sua inanidade (e unanimidade) inabordável» (p. 9), permanecendo, afinal, exactamente no mesmo ponto em que estava no momento em que a escrita se iniciava. Livro em que o pormenor, «um vislumbre, uma pequena sombra» (p. 42) é essencial, em que a breve sensação toca a maior profundidade, O Aprendiz Secreto desenvolve uma imensa e única metáfora material que põe em contacto os dois mundos: o das coisas e o das palavras (ou vice-versa). E este é, talvez, um dos pontos de maior proximidade com O Canto do Vento nos Ciprestes.

No entanto, enquanto o livro de Ramos Rosa se escreve num espaço de (pelo menos) aparente paz ou pacificação, própria de quem atingiu uma sabedoria e um despojamento que é o resultado de um longo exercício de vida, o livro de Maria do Rosário Pedreira existe numa infinita amargura, situando-se num momento de vida em que o maior conhecimento é ainda impotente para apaziguar a dor da mais infinita desolação. Esta diferença – compreensível pela

diferença de idades dos autores é, todavia, mais do que isso: remete para distintos modos de existência. Enquanto em Ramos Rosa a poesia é uma deliberada e compulsiva convocação do poético, donde deriva a concepção da poesia como um quase ofício, constantemente

exercitado, a escrita de Maria do Rosário Pedreira parece ser desencadeada por um certo número de imagens essenciais dependentes de particulares ‘acontecimentos poéticos’; aparentemente é necessário um certo tempo para que a sua relação com o mundo se condense numa particular sensibilidade, numa imagem fundamental que abre para o questionamento do sentido das coisas.

Dir-se-ia que se em Ramos Rosa o poético é o seu único modo de existência, Maria do Rosário Pedreira existe num mundo em que o trágico é sempre concreto e mesmo que admitamos que a poesia existe antes da própria escrita, existe sob a forma de um vazio que é de natureza eminentemente mundana.

Qualquer um destes livros situa-se, portanto, num espaço de luta: do poeta contra os limites da dizibilidade; do poema, enquanto forma de vida, contra o risco da insignificância.

Ambos os textos são, assim, uma aproximação ao essencial, àquele espaço onde a existência se confronta, de modo mais ou menos directo, com os seus limites intrínsecos. Num caso como no outro, se trata, pois, de construção: do poema como metáfora inabitável ou da sombra infinitamente dolorosa da solidão.

 

A ausência suspense

 

O extremo encanto (e encantamento), sempre magoado, de O Canto do Vento nos Ciprestes – livro de pequenas histórias de vida e de morte, de solidão e de desespero, de memória e de abandono – reside, em grande medida, no jogo de reenvios entre a mais íntima simplicidade dos sentimentos e a cosmogonia (e cosmologia) que, simultaneamente, reflecte essa simplicidade e é reflexo dela. Nisto se afasta de Ramos Rosa onde este tipo de reenvio se configura como repetição porque tudo é, desde o princípio, equivalente.

O livro de Maria do Rosário Pedreira é, pois, marcado pela continuidade e pela

descontinuidade, simultâneas e indiscerníveis, do eu mais frágil e da fragilidade intrínseca do criador. Do mundo e do próprio eu enquanto o eu é totalmente pobre, tão pobre que nada é seu e tudo do outro (p. 63). De um outro tão infinitamente afastado como infinitamente próximo, nos seus restos, nos seus traços, no próprio eu abandonado que só vive por essa distância e que, desse modo, torna a distância uma espécie dramática de proximidade. Tudo se condensa no outro enquanto distância, enquanto ausência. Poesia, pois, feita de ausência, poesia que afirma a ausência e, simultaneamente, a suspende. Esta ausência suspensa constitui, talvez, o núcleo da experiência poética que nos transmite este livro. E não menos importante para a sua compreensão é o facto de essa distância se manifestar através de circunstâncias múltiplas (morte, separação) mas que são sempre equivalentes, como múltiplos são os interlocutores deste monólogo, ou, pelo menos, a sua circunstancialidade.

Há, nestes poemas um desejo obstinado de diurnidade, de plenitude: o que seria a presença, o encontro; mas há, precisamente no mesmo tempo e sobre a mesma linha, mais do que a tentação, a certeza da irrevogabilidade da distância, a impossibilidade do acontecimento de que o poema é, ao mesmo tempo, a expectativa e a (não) memória. O Canto do Vento nos Ciprestes é, por isso, o choro de alguém que, mesmo sem sair a porta, conhece profundamente os segredos do mundo. O livro desenvolve-se, assim, em dois registos inteiramente distintos que correspondem, um, aos poemas inicial e terminal e o outro a todos os que entre eles se encontram, desenhando, desse modo, um espaço de asfixia que é o modo próprio de ser deste eu que espera o que sabe que não virá e de que estaria pronto a fugir, caso a vinda se concretizasse.

 

Sentimos, assim, quase insensivelmente (e o paradoxo é aqui, estritamente necessário), que o amor não é (apenas) um sentimento, mas o modo de ser, o único que tornando o sujeito pobre o torna infinitamente rico porque lhe permite ser aquilo que é, mesmo que isso seja, absolutamente nada, ou, numa versão positiva, simples testemunha.

Opera aqui, é preciso sublinhá-lo, uma teoria da dádiva: e é só aí que a palavra existe plenamente: como a insistência na afirmação da beleza da criação, desse modo cumprindo o eu a sua função de testemunha e de interlocutor, função para que foi expressamente criado. A dádiva – equivalente à vida – só existe como absoluta e infinita, como apagamento de quem dá e por isso o amor é, aqui, a metáfora, a única metáfora de todo o livro ou, pelo menos, a única que não tem o «efémero estatuto de metáfora» (42). Sobretudo porque é, essencialmente, metáfora de si mesmo.

E o amor é não mais do que o choro de um ser frágil, ponto singularmente imaterial entre dois tempos de conhecimento do ser: o sentido e a intensidade do ser intrinsecamente frágil que existe no interior de um saber ontológico constantemente convocado sob a forma de ligações entre o sentimento e a natureza, por exemplo, o que longe de atenuar a intensidade da existência sofrida antes a intensifica, elevando-a ao plano cósmico.

Um dos elementos poéticos mais importantes deste livro reside numa indecidibilidade essencial entre o cosmológico e o individual: nunca sabemos, verdadeiramente, qual plano é o originário. De modo que constituem-se duas séries paralelas e simultâneas que constantemente reenviam de uma para a outra o que faz com que a simplicidade deste livro seja só aparente: funciona apenas se o lermos nas suas partes, poema a poema, enunciação a enunciação, ou mesmo quando, reconhecendo a arquitectura ontológica do sistema poético, a separamos da dimensão imediata, isto é, do choro do sujeito poético.

A criação do mundo, como a sua alma é a forma englobante e, por contraposição,

intensificadora, da distância onde tudo se inscreve e onde tudo existe. Por isso o criador carece de uma constante afirmação da beleza da sua criação.

Por caminhos distintos, Ramos Rosa e Rosário Pedreira chegam a um espaço idêntico em que a distância é o elemento de ligação.

Melhor, no entanto, do que reconhecermos a situação deste sujeito sempre central, a sua fragilidade, como metáfora do homem no mundo, será sublinhar, por conseguinte, a indecidibilidade entre as duas séries, afirmar a sua sobreposição contínua e constante. Deste modo, um livro que parece quase excessivamente centrado no sujeito lírico, abre-se a uma ontologia do indecidível onde o que vale é, precisamente, a negação das metáforas, aquilo que se perde na metáfora, aquilo que só poderia ser dito literalmente mas que, ao sê-lo, corre o risco de se tornar mera expressão de sentimentos. Daí a função capital desempenhada pelo poema de abertura, A criação do mundo e pelo poema final, Anima Mundi.

Em Maria do Rosário Pedreira, também as palavras obedecem a uma lógica dupla do tudo e do nada. Poemas feitos de sensações e não de palavras, estas limitam-se a tentar calar o choro, mas de uma forma tão convulsiva e repetitiva como ele. É por isso que as metáforas são quase sempre cósmicas operando como elemento de ligação (de conhecimento) entre dois planos (ou seres) que, inseparáveis, estão, todavia, separados.

Não se trata, nunca, de explorar os efeitos da aura da palavra, os seus equívocos, as suas indecisões ou indecidibilidades semânticas e semióticas como acontece tantas vezes em Ramos Rosa. É antes uma poesia imediatamente feita de sentimentos: a linearidade textual insinua-nos essa imediatidade, mas, no entanto, no seu conjunto, o livro constrói (ou reconhece) uma mediação: o que se exprime não são os sentimentos imediatos do sujeito lírico, mas o espaço onde esses sentimentos ressoam infinitamente, tornando o sujeito quase uma forma de eco.

Daí uma das formas mais essenciais em que esta poesia se desenvolve: a indecidibilidade.

Mas, por outro lado, a distância (do outro) implica o apagamento das palavras e,

consequentemente, a indiferenciação de todas as coisas na medida em que não podem ser nomeadas. Donde a existência seja feita de silêncio. Só a palavra (do outro) tem o poder de fazer com que as coisas falem: «Na tua boca cantou subitamente uma voz./ E, ao dizeres o meu nome na rede de um abraço,/o rio que outrora bordava o campo emudeceu/com as suas pedras lisas. Então, foi possível// ouvir o vento soprar nas asas das borboletas/ e os lagartos recolherem-se nos veios dos muros/ e o sol ferir-se nos espinhos das roseiras.» (p. 15).

 

A voz do outro apaga os ruídos do mundo, os ruídos que criam a ordem visível (e, dir-se-ia, natural) do mundo, deixando então ouvir a natureza profunda de todas as coisas. Mas, ao mesmo tempo, essa transmutação é mais ilusória do que real, em razão do seu carácter momentâneo: «bordar uma toalha/para logo a manchar de vinho» (p. 22) e «Se não me amas, porque me avisas assim da dor?» (p. 23).

As palavras são, por conseguinte, algo de essencial nestes poemas, não precisamente ao nível da construção do poema mas ao nível da construção da realidade de que o poema é, simultaneamente, condição e expressão. O poema constitui-se como o único modo que possibilita a existência das coisas, embora sempre no modo da distância. O poema existe porque não existe a voz do outro; e o outro é presente apenas porque o poema existe: «Se terminar o poema partirás (...) não estarias aqui se eu não escrevesse» (p. 28).

No entanto, a convocação do outro pela escrita é, ainda, um acto de uma extrema fragilidade; não só pelo inevitável círculo que encerra e em que se encerra, mas porque o outro indisponibiliza a sua presença, furta-se à convocação: «Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui» (p. 27). Porquê? Porque essa a sua natureza, essa é a natureza de todas as coisas, destino inscrito desde a génse, nessa fragilidade essencial que exige a constância do testemunho.

Tudo está, pois, dependente de um olhar e de uma palavra. O risco do total apagamento é tão constante como é inevitável.

E, no entanto, não o esqueçamos, é do amor que sempre se trata. De um amor no qual reside a possibilidade de existência do mundo. Mas que amor é este que, desde o início, vive da desesperança, do conhecimento da impossibilidade: «O meu mundo tem estado à tua espera; mas/não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa» (p. 13). Amor que reflecte a contingência de tudo, amor impossível, mas, por isso mesmo, mais amor, amor mais absoluto.

Em rigor poder-se-ia dizer que nestes poemas, Maria do Rosário Pedreira, colocando-se do lado do impossível constrói uma poesia que, diferentemente da de Ramos Rosa se não liga ao indizível, mas se instala, dolorosamente, no invivível da existência como distância, como espera do que não pode ser. Todo o livro (toda a existência?) está suspenso de uma palavra que é gesto, que é a história não escrita do mundo.

É preciso ainda falar da beleza destes textos. Uma beleza de imagens que condensam os sentimentos e que, simultaneamente, constituem os pontos onde as duas séries se encontram, dando forma e visibilidade a algo que pertence a um outro regime ontológico, ao invisível: ao apenas perceptível. Dessa beleza fazem parte elementos tão aparentemente abstractos como a reversibilidade entre o eu e o outro que pertence ao mesmo regime de sentido que a reversibilidade entre o sujeito e o mundo.

Se os poemas de Maria do Rosário Pedreira existem num registo eminentemente lírico que bebe as suas origens no romantismo, desenvolvem-se, ao mesmo tempo, numa extrema precaução metafísica, sabedora de que a metáfora é, muitas vezes, um modo eminentemente artificial de gerar efeitos poéticos. A metáfora é uma prisão: «o meu amor (...) sangra quando o encerram em metáforas» (18) ou «(...) quando morrer de amor/não tinha ainda perdido o efémero estatuto de metáfora» (p. 42).

As metáforas são, em muitos casos, em Maria do Rosário, tão elementares que se negam como metáforas, tornando-se imagens concretas, simplesmente desenhadas por uma suavidade discursiva que penetra no âmago da precariedade da existência e que nos faz a nós, leitores, desejar o poder demiúrgico de criar um mundo onde as palavras essenciais como os acontecimentos essenciais não fossem escondíveis (cf. p. 68) e onde estes poemas, exactamente estes, não precisassem da distância como seu alimento natural.

 

Uma ontologia do essencial

 

Há, em O Aprendiz Secreto, uma espécie de abandono da arte poética (ou melhor: da arte da poesia), uma espécie de cansaço da arte, de cansaço da construção na medida em que, enquanto tal, não pode libertar-se completamente do artifício. Agora não há espaço para continuar a construção da forma quase metódica que tinha sido tão característica do autor.

 

Tudo está dito excepto o que não pode sê-lo, como escreve num outro livro publicado pouco

tempo depois: «O que poderia dizer eu já o disse/ e nunca o disse Ou talvez nunca o direi/ E é nessa extrema margem da minha ignorância/ que escrevo com os olhos fechados para ver/ o que nunca poderá ser visto ou que eu vejo sem ver (...)/ Por isso poema é um desvio oblíquo/ uma distância que avança para outra distância» (Deambulações Oblíquas, Quetzal, 2001, p.15).

 

Em O Aprendiz Secreto, não se trata já de explorar caminhos, de suscitar aberturas. O tempoda exploração é um tempo passado inteiramente integrado, no entanto, no tempo presente que é, essencialmente, um não tempo. Agora, o poeta e a obra são uma e a mesma coisa e trata-se, simplesmente, de o dizer. Mas esta ‘nova forma’ não significa o encerramento de um percurso, mas antes a mais pura identificação com ele. Significa a compreensão definitiva do character circular desse percurso. Longe de significar uma passagem do poético ao reflexivo, representa antes a condensação poética naquilo que é a sua incontornável essência: a impossibilidade de dizer o que mais importa, sendo que, no entanto, na manifestação dessa impossibilidade algo de radicalmente essencial é dito.

O ser e a separação inscrevem-se, agora, mais do que nunca, numa espécie de fita de Moebius e toda a poesia se torna esse não percurso. Da pluralidade (de caminhos, de suscitações pela palavra), passa-se a uma unidade, a da obra, de que a construção é a face visível. É, afinal de uma nova forma de repetição que se trata; repetição que foi sempre uma das palavras-chave do gesto poético roseano que esclarece: «Alguns dizem que eu escrevo de mais/ como se tivesse escrito alguma coisa/ Não, todas as minhas inscrições foram acenos/ a algo que nunca atingi/ e que era a única coisa que eu desejava dizer// Sei hoje que talvez não fosse nada...» (Deambulações Oblíquas, p. 35).

 

O mais notável n’O Aprendiz Secreto é, talvez, o modo como a poesia e a reflexão se entrelaçam, se unem num discurso que, todavia, nada tem de híbrido. Como se o poema – que é, em Ramos Rosa, sempre reflexivo – se encontrasse, de súbito, perante a necessidade de se olhar não tanto na sua vertente propriamente criadora, mas nas condições em que essa dimensão se exerce, nesse espaço mágico em que as palavras são o caminho não para ascoisas, mas das próprias coisas.

 

Pausa sem paragem, reflexão sem suspensão da criação propriamente poética, O Aprendiz Secreto é ainda, na sua natureza mais íntima (e secreta), a afirmação da indistinguibilidade da obra e do mundo, de um mundo que não é outra coisa do que o ser na multiplicidade das suas formas, reais e possíveis, visíveis e invisíveis. Corresponde, de certa maneira, à coincidência plena da distância e da proximidade, isto é, ao modo próprio de tudo ser, na sua diferença entre plenitude e possibilidade, entre nocturno e diurno, entre continuidade e diferença: «A continuidade do tempo é a sucessão de presenças e ausências, de elevações e quedas, de desaparecimentos no seio do aparecer, de enxames de sombras nos círculos luminosos» (p. 43). Este livro é, por isso, simultaneamente, a imagem e o facto da indissolubilidade da obra e do ser na sua separação e nas formas da sua continuidade.

 

O inexprimível

 

Se a poesia existe porque existe o inexprimível (O Aprendiz Secreto, p. 64), o que Ramos Rosa nós dá neste livro é a teoria concreta da nossa relação com esse inexprimível. A construção é, assim, e quase paradoxalmente, a do próprio inexprimível, tudo se processando num círculo infinito que se não tem, evidentemente, saída, não tem, também, nenhum ponto que possa ser visto como entrada. Neste contexto, compreende-se que a construção não é metáfora de coisa nenhuma: não é imagem da criação do poema nem da construção da vida: é o próprio facto da indissolubilidade dessas duas coisas. Se «A construção da morada é sempre uma reconstrução do corpo» (p. 74) , não é menos verdade que «A finalidade da construção não é a obra acabada para ser habitada finalmente na tranquilidade de um repouso merecido» (p. 71).

A construção justifica-se no próprio ser, na fractura que lhe é inerente. A separação não distingue duas coisas ou duas naturezas mas dois modos do mesmo. O vazio é o plano subjectivo (ou melhor, em linguagem fenomenológica, o noético) dessa fractura. Distingue, também, dois pólos. O construtor habita o vazio porque sente a distância como pura negatividade e não, ainda, como possibilidade do encontro. É a mudança radical deste modo de sentir que deve ser propiciado pela construção; que é a construção. Por isso, «A habitação será, assim, uma realização do ser, reconhecida como abertura essencial da terra e consagrada, na sua mudez,

como a energia livre que reúne em si o vazio e a plenitude» (p. 67). Ou ainda: «A construção revela (...) a sua essência unitária e criativa, na medida em que se torna habitação pura de um espaço unificado e novo» (p. 68).

Mas o que faz nascer este movimento? Por um lado, a vivência do mal-estar; por outro, alguma coisa, no interior do ser, que indicia o segredo do próprio ser; vejamos como Ramos Rosa dá conta deste duplo processo: «Tudo se passa como se uma verdade oculta a cada momento ameaçasse a soberania da verdade aparente dos nossos hábitos (...) Essa verdade, que é a verdade do corpo e dos sentidos, foi suprimida pela visão que a integrou em si, apagando-a completamente na sua visibilidade imediata e na sua presença total. Mas entre a visão e os sentidos a diferença subsiste sempre e essa diferença manifesta-se na iminência de algo desconhecido ou num mal-estar ou ansiedade inexplicável. É esta parte secreta do ser que se subverte violentamente quando o construtor se entrega ao fluxo criativo» (p. 72).

Simultaneamente, «A construção não seria possível sem uma nesga de luz ou uma pequena formação do espaço se não se tivesse constituído no abismo obscuro da psique do construtor» (p.57). Ainda aqui encontramos a conjugação de factores objectivos e subjectivos. O construtor é (não representa) a dimensão de suspeita do ser, de suspeita da distância que fende a unidade. Todavia, é também esta distância a condição do (re)encontro das partes.

É, por outro lado, nesta nesga de luz que emerge o instante, isto é, aquele momento privilegiado em que o construtor e a construção se tornam, de facto, uma participação no ser.

Como escreve Ramos Rosa, «O ser é assim a construção de si mesmo» (p. 29) e a própria distância é produtiva. O construtor não se opõe ao ser; está ligado a ele indissoluvelmente e a construção visa, simplesmente, preencher o vazio (que é ainda ser) com o espaço da habitação: «A habitação será, assim, uma realização do ser, reconhecida como abertura essencial da terra e consagrada, na sua mudez, como a energia livre que reúne em si o vazio e a plenitude» (p. 67).

Tudo se passa, pois, no interior do ser, na passagem do ser que aspira à unidade; mas mesmo esta unidade é já originária: «A habitação terrestre do ser reconciliado no seu espaço inicial e na sua pura finalidade originária» (p. 61).

Todavia, na unidade do ser existe uma falta essencial, um lugar onde emerge o desejo. O construtor nasce dessa falta, do desespero que ela provoca em si: «O construtor sente como ninguém a inexistência de indícios divinos tanto na realidade exterior como no seu interior. É na mais completa solidão que se inicia a sua construção...» (p. 30). E essa construção não tem outro objectivo que não seja a reposição da unidade originária: «Todo o gesto construtivo tem como objectivo essencial a integridade do ser» (p. 55). O não ser do ser – o vazio – é o efeito da nomeação, do homem que institui a separação pela ruptura com as ligações naturais, com a unidade original. É uma separação que, todavia, desde o início espera pelo construtor. A visão é instituidora da diferença. Mas, em contrapartida, a construção, enquanto ultrapassagem desse abismo imanente ao ser, constitui um movimento em que todas as diferenças, todos os vazios, todos os abismos, são integrados numa unidade que recupera a continuidade: «O que há de inesperado e surpreendente em cada gesto construtivo é a emergência, através do vazio, de um ser uno que se projecta, de diferença em diferença, e todas as diferenças unifica no seu impulso ao mesmo tempo imemorial e inovador» (p. 60). Vemos, deste modo, que em Ramos Rosa, a poética só pode ser pensada como ontologia porque a palavra, o acto original da nomeação se inscreve no espaço de simultaneidade da «flexibilidade da brisa e o peso maciço do ser» (p. 15). Daí a importância do instante (dimensão ontológico-temporal privilegiada pelo autor: «Celebrar o instante é consagrar a unidade na diferença e a sua virgindade inicial como a possibilidade da contínua renovação do ser» (p. 14). O instante é o ponto em que a distância se compreende como a essência do encontro: «A essência da distância é a essência do encontro, do espaço renovado. Sem a distância nenhuma construção poderia ser habitável nem nenhum horizonte visível» (p. 28).

Sem distância não haveria encontro mas coincidência inconsciente: «É então que ele encontra a forma do ser como se o longínquo se tornasse acessível na distância» (p. 24) e «O mundo surge então como criação do mundo...» (p. 36). O presente, sobretudo sob a forma do instante, é a dimensão essencial porque é nele que, sob certas condições – precisamente aquelas que o construtor visa convocar – a origem e a finalidade se conjugam. Isso será a obra, noção onde se notam inequívocas ressonâncias alquímicas, por efeito da palavra que é o agente da transmutação: «O corpo, então, sente-se contemporâneo e cúmplice do grande círculo do ser em que os montes, o mar (...) são presenças vivas dele próprio reencontrado no espaço solar da unidade natural» (p. 74).

 

Conclusão

 

Se a poesia de Ramos Rosa é um infinito monólogo com o ser no interior de uma ontologia inequivocamente optimista, a de Rosário Pedreira é um diálogo com as sombras onde não há qualquer hipótese de ‘salvação’. A uma materialidade indeterminada em Ramos Rosa opõe-se, em Maria do Rosário Pedreira, uma materialidade concreta e impenetrável. É, pois, mais de impenetrabilidade do que de indizibilidade que esta poesia nos fala; o inexprimível é a própria vida, a ausência de espaço, essa espécie de asfixia. Mas a saída não seria a expressão: «Nenhum poema/ podia ser o chão da sua casa» (O Canto do Vento nos Ciprestes, p. 18). À ideia de uma possível saída opõe-se o segredo «Mas se há naufrágio guarda-se segredo da tragédia» (p. 71). E opõe-se, ainda mais radicalmente, esse gesto absolutamente

incomensurável e indescritível «de quem subiu /à escarpa e, iludindo a arquitectura da luz, espreitou/ impunemente no decote do mundo e lhe arrancou a alma» (p. 71).

E, no entanto, há uma relação essencial com o mundo que obedece à lógica do paralelismo: «Quando me abraças pulsa nas minhas veias a convulsão/ das marés e uma canção desprendese da espiral dos búzios» (p. 25). É essa relação que constitui, afinal, os «retratos efémeros» (p. 71) e autoriza esse extraordinário verso que diz: «Os vermes/alimentam-se dos sonhos de quem morre» (p. 31). O choro encontra, assim, a sua dimensão de algum modo gloriosa.

O que existe de comum entre Ramos Rosa e Maria do Rosário Pedreira é, sobretudo, o facto de a poesia estar sempre antes das palavras que a exprimem, num antes que, por não ser temporal, pode também ser depois. Trata-se de uma prioridade ontológica que anula qualquer hipótese de cosmética literária ou ideológica. Em ambos estamos perante um sentimento de ser que as palavras circundam, indiciam, insinuam, mas também, simultaneamente, obscurecem e afastam, precisamente pela sua quase extrema materialidade, pelo sempre presente risco da metáfora. E estamos, seguramente, perante duas extremamente belas e tocantes obras.

 

Publicado originalmente em Cyberkiosk, 2001

Rui Magalhães



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O que nos diz a imagem? Diz-nos o que é e não o diz.
Porque não é uma palavra. Antes um silêncio,
Uma ausência, um vazio.
O seu sentido é uma promessa de sentido
Ou o silêncio do sentido que respira e transparece.
Ausência na presença plena.
Cintilação silenciosa e fixa de um olhar sem fim.
Um olhar vazio de tudo – que vê e não vê
E só vê porque é cego.
Tudo nele é visão, mas a visão vê tudo.

António Ramos Rosa, «Le Domaine Enchanté»



O que assinala o começo da produção visual de Ramos Rosa não é o mundo que olha (não há referentes), mas a vontade de um gesto perante a disponibilidade de uma folha de papel. Não há referentes prévios para serem olhados e transferidos para o papel, tal como na poesia de Ramos Rosa não os há. Os referentes surgem depois porque a grafia, seja da escrita seja do desenho, os pode pedir. É esse contracto, entre mão e plano bidimensional enquadrado, que a grafia torna algo visível para o olhar.

Há uma peculiar dimensão topológica (que achamos ser uma questão também da sua poesia) a funcionar. Não um topos de superfície, não de cores e texturas que definem superfícies. O topos vislumbra-se através de uma linha despida de contornos. Sem húmus nem tacteabilidade, sem pele nem carne, é no limite em que o corpo (a figura) se escapa que ela se revela. Diríamos um topos que se revela no limiar de uma linha que lhe indica um limite, como uma duna que se expressa nesse momento que já não a vemos, em que já não temos areia, mas um declive linear que o seu limite revela.

Ramos Rosa não é um pintor, não é um agente da cor e da mancha, mas de desenho e de grafia. Não há contornos, porque não há nada que as linhas possam fechar. Não há superfícies preenchidas, mas apenas linhas que pesquisam uma travessia nua da extensão. Mais do que superfícies contornadas, as linhas encontram fluxos e refluxos, tensões e distensões, orientações e oscilações, um jogo de expressão dinamográfica em que o plano se mantém sempre plano.
O gesto do desenho faz essa relação entre o tempo da inscrição e o rasto assinalado na extensão plana da folha de papel. Porque a folha tem extensão, ela permite que nele se inscreve o tempo do gesto. A inscrição revela-se numa mesma anima espaço-temporal.

Como poeta, que ao mesmo tempo ainda é e deixa de ser enquanto desenho, é um homem da grafia. Há um gesto na escrita que se suspenda da letra e da palavra para escoar espontaneamente na superfície. Ao contrário de Henri Michaux, que ao se disponibilizar para uma folha de papel tanto podia começar um poema ou uma pintura, Ramos Rosa separa os actos, concatenando o desenho com a poesia. O desenho surge assim como espaço de respiração do peso semântico da palavra, dessa «cintilação silenciosa» agregada à diáspora errante da linha.

Entre a escrita poética, o poeta faz uma grafia outra, diria descaligrafada – ou de calipt (do oculto) – onde o gesto e o suporte são um espaço intimista e livre de acontecimentos.
Ramos Rosa começou a desenhar com a série O Rosto de um Desenho. Nestes desenhos há um efeito mais centrífugo em torno de um centro através de uma curva elíptica que concebe a figura estrutural do rosto. Ainda nesta série começamos a encontrar desvios a esse centro. Os bichos instantâneos, como chama Ramos Rosa, à série mais recente em que dominam os pássaros, evitam qualquer fechamento em torno de um único centro, preferindo a contracurva, criando tensões multilaterais ao percurso da linha.

As primeiras origens da grafia dos desenhos não são estéticas, mas temperamentais e existenciais, uma descompressão. Por isso ela lança-se na garatuja, espontânea e livre. Mas esta ausência é também a possibilidade do estético, possibilidade de um espanto do próprio António Ramos Rosa perante o que surge. Entre o descomprometimento libertador do gesto e a possibilidade estética desenvolve-se esta produção.

Fernando Paulo Rosa Dias


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António Ramos Rosa: a transparência da terra


[diálogos]

Rosa Alice Branco e Rodrigo Petrónio


RAB – Embora esta seja uma antologia de poemas, penso que é importante começar por aquilo que Ramos Rosa entende ser o papel da Poesia. Neste sentido, escreve em Poesia Liberdade Livre: “a poesia continua, sob o mesmo signo, a ser o lugar dessa aventura e desse debate espiritual, que é porventura, o maior e o mais significativo do nosso tempo”. Penso que a leitura do livro vai revelando como Ramos Rosa habita esse lugar que, segundo ele, “tende à essência humana”.

RP – Sim. Mesmo sabendo que o autor não tem autoridade sobre o que escreve e não dá a última palavra ao sentido de sua obra, é muito interessante traçar um paralelo entre os trabalhos poético e o ensaístico de Ramos Rosa. Em ambos podemos notar uma unidade de pensamento no que diz respeito à dimensão que compartilham: a liberdade. Mais que isso: a liberdade pairando livre até de si mesma, como no verso de Rimbaud. Tanto sua poesia quanto seus ensaios se preocupam com a revolução, não entendida como engajamento em uma causa externa, mas sim no seu sentido etimológico: aquilo que se volta sobre si mesmo e retorna à sua origem. As palavras livres e revulsivas tomam seu próprio pulso e, como reino do possível, se proclamam como a mais densa das realidades prováveis. Contra o telos do fim, todas as teleologias e doutrinas salvíficas que engendraram concepções equivocadas de progresso, escamoteando suas intenções maliciosas, e não fazem nada mais que empobrecer as possibilidades humanas em uma época de "imperialismos ideológicos" e de "desumanização", como diz o poeta, temos o arco dobrado sobre a lira. Em sua dimensão autotélica, o poema é a maior revolução possível, porque espelha a concordância do pensamento consigo mesmo e, com isso, a mais profunda forma de engajamento. Os signos em rotação são a conseqüência lógica de um pensamento que se abre ao analisar suas próprias engrenagens: cisão com o modelo descritivo, representativo e positivo da linguagem, o poema não narra, descreve, diz ou veicula nada. O poema, nas palavras do crítico Eduardo Prado Coelho, "acontece". Esse acontecimento é desvelamento mas também é ação: retorno ao estado elementar do mundo e repúdio radical a toda tentativa de tentar transformar o homem e a palavra em instrumentos do que quer que seja.

RAB – A transformação é, na verdade, outra. Na sua poesia a inserção do homem no seio do mundo é operada pela palavra: geradora, rito de passagem e circulação entre eles. A palavra é tanto mais cópula entre ser e mundo, quanto mais pobre, já que a pobreza, tal como a ignorância, são as qualidades requeridas para abrir o espaço do encontro, pois a palavra e objecto de sentido identificam-se na sua poesia que se quer pura presença, tentando escapar à dimensão representativa. Em O Incêndio dos Aspectos escreve: “Ó árvore ó palavra ó árvore” . E reencontramos essa indistinção originária de que falas, mas agora entre a palavra e o objecto evocado. Porque o objecto nunca é meramente evocado ou enunciado, mas invocado e convocado para esse incêndio de todos os aspectos que é a poesia de Ramos Rosa. A palavra gera, na medida em que cria o mundo dos possíveis e é operadora da transformação do possível em real. Se Leibniz nos dizia que o real não é da ordem do possível, mas do compossível, aqui todos os possíveis são a priori compossíveis. Por isso, na poética de Ramos Rosa cada coisa pode ser tudo e nada, o que nos leva à polissemia infinita da palavra. Em Ciclo do Cavalo, por exemplo, “cavalo” é, na verdade, um termo camaleónico. Mas nunca deixa de ser cavalo, mais cavalo ainda, ao receber todos os movimentos e todos os objectos na carne da sua palavra. Numa entrevista, Paula Cristina Costa nota que a arte poética de Ramos Rosa é uma metapoética, com o que este concorda inteiramente. Mas seria preciso aclarar em que consiste a especificidade desta metapoética, em que a interrogação sobre o poema acrescenta ao ser o não saber de si e o amor da busca para pertencer ao mundo, que é também o mundo das palavras. Neste belíssimo livro que acaba de sair agora – Génese seguido de Constelações – lemos: “Escrevo para ser contemporâneo das nuvens/para pertencer à nua e pobre pátria inerte”. Talvez por isso Ramos Rosa ache que a metapoética se correlaciona com a metafísica, na medida em que esta é a reflexão do poeta sobre a percepção do mundo. Mas, de facto, em Ramos Rosa, esta reflexão é apenas a luz que as coisas lhe devolvem em forma de palavras.

RP – Creio que aqui você tocou em dois pontos centrais: a poesia como operação metalingüística e como metamorfose, completa reversibilidade, por meio da palavra, entre o possível e o provável. A metamorfose se dá mediante uma visão radical daquilo que você vem conceituando de maneira ímpar, a partir da obra de Lévy-Bruhl, como “participação”. Aliás, esse conceito pode ser uma verdadeira chave para a leitura da poesia moderna. Todas as coisas são o cavalo porque todas as coisas que o predicam participam indiscriminadamente em sua essência. Não há anterioridade da essência em detrimento do atributo, mas decalque, tatuagem, inscrição, espelho que produz e altera todo o rosto. Poder-se-ia dizer que Ramos Rosa, à maneira de um curioso nominalista do século XX, não depreende o ser dos objetos de uma substância primeira, de sua ousía, não define o particular a partir do seu grau de adequação a um pressuposto universal, mas sim faz o universal participar e se imiscuir, enquanto haeccitas, indistintamente em todas as ocorrências sensíveis, particulares e acidentais, que são elevadas a uma dimensão transcendente sem perder sua especificidade empírica, sua radicação ôntica, concreta, ou seja, sua estidade. Essa operação se dá também em um belo livro como Pólen-Silêncio, onde os atributos vegetais são distribuídos e aplicados a uma gama enorme de fenômenos e objetos, alheios ao domínio específico deste reino. O jardim, neste livro, torna-se maior que o universo, ele próprio vira um universo-vegetal do qual nosso universo, tal e qual o conhecemos, seria uma só ramificação, assim como para alguns povos arcaicos, como bem observou o grande filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva, todo o mundo sublunar não passa de um ramo da árvore-deus Yggdrazil. Disso infiro que possamos ler a poesia de Ramos Rosa sob o signo de um conceito: a transparência. Desmanchando as zonas de opacidade que demarcam cada objeto e a despeito da causa formal que modela cada ente, Ramos Rosa filtra a percepção e a faz coincidir com a luz. Não a luz que ilumina o rosto, o lumen referido pelas doutrinas de pintura renascentistas, tampouco a luz tomista, a centelha de consciência que Deus instila no homem por meio da sindérese, mas sim aquela que circula nas veias do mundo e é o seu princípio mesmo de inteligibilidade. Transpondo todas as formalizações, na viagem que esta poesia empreende rumo àquela zona anterior e originária, à matéria indistinta dos deuses, bem poderia ter dito Konstantinos Kaváfis, pode-se muito bem dizer que as árvores “sob o mágico sopro da luz são barcos transparentes”. E assim temos uma partitura de conceitos e imagens em permanente metamorfose. Há alguns eixos: amêndoa, verde, pobreza, luz, sombra, água, fogo, pólen, veludo, pedra, árvore, nudez, sol, ar, terra, sexo, corpo. Como agenciadores de sentido, criam núcleos magnéticos e captam os objetos em suas redes de imagens. São devires, no sentido que Deleuze dá à palavra, e assim articulam uma política de devires. São o devir animal, o devir planta, o devir pedra, o devir terra, entre outros, e, por extensão, a transposição de toda contingência e de todo condicionamento por meio da livre predicação: a voz que fala no poema é mulher, barco, praia, vegetal, folha, pedra, parede, criança, entranha, vento, bicho, e, mais que isso, um acorde composto de todos esses elementos. Essa realidade expandida se dá sempre em um âmbito metalingüístico, porque, de saída, já se supõe que a palavra cria o mundo, não que o mundo seja representado pela palavra e esta, o seu sintoma, como rezam os obsoletos argumentos da sociologia. O mesmo Deleuze diz que a política é anterior ao ser. Ramos Rosa poderia retificar a assertiva, e propor-nos que a palavra é anterior à política, entendida aqui como toda a zona de projeções e representações, como toda a objetivação do espírito e todo o campo fenomênico que se possa aduzir. No Brasil, onde ainda vigora uma concepção pobre de metalinguagem, que eu defino como um fetiche do significante, algo da ordem da sexualidade (e da política) recalcada, esta poesia pode ser preciosa e alterar todo um cenário cultural. Pois ela alude ao real, mas nos despista com uma falsa positividade; é um fato de linguagem, mas o tempo todo se propõe como encenação e minimiza a importância da técnica e do artifício, visto como algo secundário, irrelevante e, em último caso, pueril. Inscrição indicativa que obriga o leitor a recorrer os seus rastros e resíduos para percorrer o seu verdadeiro sentido, a poesia de Ramos Rosa, de fato, como você diz de maneira exemplar, aponta para uma metafísica, mas a concebe como fantasma e simulacro. Pura imanência do tecido verbal e articulação de imagens e pequenos mitos que produzem mundos, o único enigma que há é o fato de todas as coisas serem banhadas pela luz inexplicável da transparência. Se há mistério, ele nasce de não haver mistério nenhum, para lembrar Caeiro. Se há Deus, e ele é um círculo, o é na medida em que sua circunferência está em toda parte e seu centro, em parte alguma, invertendo-se os postulados. Por isso cada coisa que existe pode ser outra e outra e outra, ad infinitum, circulando na periferia infinita das infinitas circunferências que Ramos Rosa apõe ao real e mobiliza em sua criação. Eis o seu princípio de excentricidade, que é exemplar. Depois do longo processo de entificação do ser levado a cabo no Ocidente, processo este que praticamente se confunde com a sua história, finalmente os entes podem circular, na ubiqüidade da seiva que os modela e os funda, para além deles próprios e para além dos limites de todos os conceitos.

RAB – Essa limitação dos conceitos é claramente posta em relevo por Ramos Rosa no texto “Mais silêncio mais sombra” do último número da revista Espacio/Espaço Escrito, em que a metade portuguesa lhe é, toda ela, dedicada. É um texto surpreendente em que condensa o imo do seu universo poético. Ao lê-lo, senti e sinto a emoção da transparência que nos dá a ver a transparência do devir do mundo. É um texto pleno de esperança na palavra como agente transformador: “O vocábulo novo, retemperado pela nascente, substituirá o rigor rígido do conceito pela fluidez e fugacidade de uma respiração. Na sua intrínseca transgressão a palavra conduzir-nos-á à nudez viva do silêncio, à transparência do ilimitado”. Como muito bem apontas, uma das muitas e unas chaves da poética de Ramos Rosa é a transparência, possibilitada pelo silêncio e pelo vazio. Aqui Ramos Rosa vai beber muito nas filosofias do Oriente concedendo, naturalmente, uma pulsação originária à respiração. Mas esta origem nunca é temporal (seria, para utilizar o título do teu livro de ensaios, um início transversal do tempo) e o silêncio nunca é um vazio sem irradiação: “O silêncio neles era a substância viva de uma palavra que não desejariam dizer para que não a perdessem”. O apelo que sentimos para um estado inicial, a urgência da vida que havemos de ser depois de nos libertarmos, através do silêncio da sombra e da incandescência, será a palavra nua. Só com esta nasceremos de novo puros. O universo de Ramos Rosa é sempre de fusão. Aqui a transparência e a obscuridade requerem-se, como o sim e o não, como o ser e o não ser, e tudo o que é contrário, dentro da óptica do conceito, coabita feliz, residindo a plenitude neste pulsar de diapasão. Ramos Rosa é um guardador da palavra essencial, porque e a sua escrita é uma lenta e contínua interrogação para que a sua palavra seja “o fruto vivo do silêncio e do vazio, transparente, aberta e nua”. Ainda bem que tocaste no ponto que me é particularmente querido, que é o da participação. No fundo é dela que tenho estado a falar. Ramos Rosa chega a afirmar, neste mesmo texto, que os deuses – e todos eles coabitam – têm a realidade das nossas sensações. E em toda a sua obra há um léxico recorrente, como lâmpada, branco, redondo, folhagem, etc., em que o mesmo termo significa sempre o uno e o diverso. Inclusive, a sucessividade em Ramos Rosa é o movimento do simultâneo. Tal como não deixa perder a palavra intacta, nada perde do universo inteiro. E não poderíamos estar diante do tropos a que comumente se chama metáfora, porque estaríamos já novamente no domínio da substituição e, por isso, da perda. A poética de Ramos Rosa é copulativa e não alternativa: o vazio torrencial é o ónus da participação sem tréguas e só por ela seremos salvos.

RP – Sim. Exatamente. Talvez por isso Eduardo Lourenço, em seu ensaio excelente intitulado O Excesso do Real, ao analisar a poesia de Ramos Rosa, tenha ressaltado esse aspecto de sua dialética interna, que oscilaria entre uma Ausência e uma Presença, esta tentando assimilar aquela em seu equilíbrio que não pressupõe nenhuma exclusão, porque não há nenhum antagonismo. Essa conciliação dos opostos em uma unidade imanente também se dá em um dos seus livros de prosa poética, Relâmpago de Nada. Como bem assinala a estudiosa Paula Costa no Posfácio, o próprio título do livro já é um quiasma, um paradoxo, uma antinomia. Nele estão implicados os dois princípios aparentemente antitéticos da sua poesia, a plenitude proposta pela luz fulminante (relâmpago) e o vazio que se lhe agrega como atributo: o nada. Esta vacuidade, por paradoxal que pareça, é um corolário não uma refutação. Porque se a expressão da palavra é sempre a “inauguração de um espaço de sentido que se abre”, ela mesma, em seu movimento, também produz a sua contrafacção: uma zona de sombra que expressa a palavra “não dita” e “exilada em seu silêncio”. Você mencionou alguns pontos fulcrais da poética de Ramos Rosa. Entre eles a idéia de silêncio. Esse silêncio ratifica tranqüilamente o sentido da origem, que a sua poesia busca, na medida em que se propõe como espaço inaugural, não só das palavras, mas da possibilidade mesma de dizer. O silêncio é visto como instância projetiva da linguagem. Dele ela nasce e a ele ela retorna transfigurada, porque ousou dizer e assim cair no estado de ser, na derelicção, como quem perde o paraíso por espontânea vontade e, mais que isso, faz desse gesto o objetivo maculado da afirmação da vida e de tudo o que ela acarreta, como privação, limite, finitude e impossibilidade. Nesse sentido, Ramos Rosa pode muito bem ser visto como alguém que desenvolve uma poética da impossibilidade, fundamental e fundadora, para usar o famoso conceito de Maurice Blanchot, ensaísta que ele tanto admira. Você não acha?

RAB - Em primeiro lugar acho que desenvolveste um dos pontos ambíguos e cruciais, tanto da esfera do Ramos Rosa poeta como ensaísta. Tal como ele, numa certa perspectiva, estou completamente de acordo, mas não posso deixar de acrescentar a outra face da moeda. Em L’âge Secret de L’ignorance, escreve Robert Bréchon: “Se a transparência ‘vertical’ é a forma apolínea da ignorância reencontrada, a redescoberta da verdade do sopro (respiração?) é a sua forma dionisíaca”. Mais do que uma relação dialéctica, trata-se de uma relação dionisíaca com o mundo que, tal como em Nietzsche, não exclui Apolo, nem o dispensa. E contudo, também relação que, apesar de tudo, não pode deixar de se chamar “dialéctica”, e que sempre entendi como tu: como uma dialéctica sem exclusão. De forma quase inversa da perda, vejo-a como a criação de mot-valise, em que os termos aparentemente antitéticos entram em jogo de sedução mútua, para entrarem na desmedida de uma cópula excêntrica. É que Ramos Rosa é um poeta perspectivista, mas todas as perspectivas convergem para o acto inaugural que é, também ele, ponto de chegada. Mesmo quando escreve “sim do sim do não do não”, ou “a não verdade e a verdade”, eu sinto esse uníssono, essa polifonia convergente sem perda de diversidade, essa conspiração, concupiscência pura, num universo em que palavra e mundo coincidem. E a palavra que assim o diz tem em si, como diria Álvaro de Campos, todos os sonhos do mundo. Por isso, a impossibilidade é sempre jorro de possibilidade e a possibilidade é já fecundadora do real. Trata-se acima de tudo de uma poética da fecundação da palavra para chegar à palavra mais longínqua e, por isso, mais próxima de nós e da nascente. Esta ideia de fecundação e jorro coloca-me de imediato numa outra das características dominantes da poética de Ramos Rosa que é a eroticidade. E também aqui não estamos perante o eros em sentido habitual, ainda que também participe desse sentido. O eros habita tudo o que existe, desde a pedra à mulher, numa modalidade simultaneamente amorosa e animal. Todo o universo é volúpia e a poesia oferece-se generosamente a todos os sentidos. Nascente Submersa é talvez o livro em que o erotismo mais se enuncia em avalanche, da terra à mulher, ao animal e, de novo, à terra. Todo o universo se esbanja em formas plenas, um magma torrencial é o fluxo da palavra no poema. É certo que o amor/eros não existe sem o eterno feminino, como nos versos deste livro que citei: “Uma água subtil flui entre os seus tornozelos./Quem poderá dizer a lisa imobilidade do seu ventre/e o hímen da perfeição com suas árvores violentas?/A vulva tanto pode ser uma cripta ou um vulcão”. Quanto a mim, Ramos Rosa refaz em cada poema o acasalamento que origina o mundo como livro a vir (para retomar Blanchot), como celebração do jacto da palavra a penetrar a terra numa alegria animal e pura.

RP – A relação da poesia com a respiração pertence a uma concepção órfica, à qual podemos tranqüilamente vinculá-lo. Isso está no famoso diálogo Íon de Platão, no pitagorismo, nas artes poéticas de inspiração platônica, e a idéia mesma da poesia como sopro, como pneuma, é repleta de componentes iniciáticos, da tradição hermética e da gnose. Aliás, se pensarmos nas Sibilas e nos ritos e cultos de mistérios da antiguidade, a história da poesia quase se confunde com a história dos saberes revelados, prescritos e previstos por uma série de técnicas de êxtase e de códigos de iniciação. A dimensão corporal e sexual desses ritos e signos de pertencimento e de desvelamento é evidente e incontestável. No caso da poesia de Ramos Rosa, uma das primeiras teses defendidas sobre sua obra no Brasil, de autoria de Maria Heloisa Martins Dias, chamada Signo do Desejo, elege justamente esse ponto concernente ao amor, ao desejo e ao erotismo de maneira mais expandida como fio condutor de sua análise. É claro que, em ambiente moderno, a poesia de Ramos Rosa resgata essa tradição iniciática, mas a lê, não como regresso a um imaginário de credulidade ou como manutenção de doutrinas obscurantistas, mas sim como base de superação da aporia em que desembocou o criticismo kantiano. Tanto sua poesia quanto a sua inserção nessa linha histórica supõem uma crítica ao dualismo. Por isso, você está com toda a razão, ao minimizar o papel da dialética na sua poética. Há assimilação do negativo e reversão do positivo, que não é mais visto como algo dado e inequívoco. Nada mais distante da poesia de Ramos Rosa do que o trabalho do negativo que encontramos em Hegel, este sim, filósofo da exclusão sistêmica e da luz sistemática que varre tiranicamente todas as zonas de sombra do mundo, sob o pretexto demagógico do progresso. Seu intuito parece ter sido a criação de um império universal do em si puro, como pensamento centralizado e ápice da racionalização abstrata. Daí ao pan-germanismo é um passo, mas os intelectuais, politicamente corretos, preferem incriminar Heidegger e dizer as maiores atrocidades sobre Nietzsche, o filósofo que destruiu, sumariamente e a marteladas, todas as possibilidades de totalitarismo. Se, como previa Hegel, todo evento já traz em seu bojo a sua negação, concebida como razão necessária de seu advento como fenômeno e primeiro motor da dialética, então Ramos Rosa, em sua poesia, ultrapassa esse dilema, ao propor que ambos sejam assimilados pelo devir e pela temporalidade, que subtraem essa dicotomia de superfície e desmontam suas engrenagens. Creio que a força de sua poesia, nesse sentido, devenha de seu caráter original. Original entendido aqui como convocação do leitor a auscultar a voz da origem. Não no sentido frívolo de novidade, de efeito de linguagem que disputa olhos e espaços em uma sociedade de mercado, de consumo e de livre concorrência, operação esta que, diga-se de passagem, por mais que seus defensores não o queiram, demonstra a ascendência ideológica burguesa da qual ela procede. Trata-se de uma poesia mobilizada por Eros, poesia modeladora do mundo, e você tem mais uma vez razão e sua colocação é extremamente aguda: é o sopro de Eros que desmancha os limites das coisas e que agencia a união de diversos reinos e espécies, ao abolir por completo o princípio lógico da não contradição. Eros como genitor da poesia, mas como artesão de mundos, como manifestação do corpo, mas também como voz original que se desprende da terra e une toda a cadeia de entes, desde os infra-celulares, passando pelos vegetais, pelos minerais e pelos animais, e indo desembocar nos astros e nas constelações. Essa é o princípio eidético da poesia de Ramos Rosa, a univocidade do ser que está em tudo e em tudo participa e se manifesta de maneira equânime e ubíqua. Penso em Saint-John Perse, cuja poesia se propõe como a própria encarnação de Eros. Penso em Parmênides, que não doutrinou sobre a diferença, e com isso preservou o universo intacto em sua transparência. Para Ramos Rosa, a ferida do ser, da qual nasce esta abstração chamada Ocidente, se chama dualismo. Mesmo ela, por meio da poesia, pode ser curada. Ao menos ser transformada em uma ferida intacta, como diz o título de um dos seus livros.

RAB – Acho que chegaste a um dos pontos chave da poética de Ramos Rosa. Essa voz original que se desprende da terra e une toda a cadeia dos entes é objecto de Siris, o último livro de Berkeley. Constitui-se como uma deliciosa cosmologia banhada pela mesma luz da poética de Ramos Rosa. Na continuação do que dizes, a Siris é exactamente a cadeia que pressupõe o contínuo fluído como possibilidade do descontínuo e aquele infiltra-se em todos os corpos, provocando nestes efeitos figurativos. A Siris une todos os seres, cujo primeiro e último elemento são incorpóreos e todos os elos intermediários são corpóreos, porque são capazes de gravidade, movimento e outras qualidades dos corpos. Esta cadeia unificadora deve ser percorrida até à aurora do espírito, o que significa recriar o espírito ampliando a celebração da vida através de um “olhar” que dê conta da magnífica exuberância do mundo em toda a sua variedade. Mas, segundo Berkeley, se ficarmos estritamente pelo que a ciência nos oferece renunciaremos a habitar a profusão das coisas. É a força “equívoca” da cadeia unificadora que lançará “um clarão nesta paisagem sombria” e este clarão, este Relâmpago de Nada (lembrando o título de um dos livros de Ramos Rosa) é exactamente a própria aurora do espírito. Estamos novamente no momento inaugural, incorporando em si todo o tempo e todos os entes, mas com um novo dado que é, também, central na poesia de Ramos Rosa: a ideia de que é necessário ultrapassar o conhecimento para chegar à ignorância como pos scriptum do ritual de iniciação à vida. De facto, O Livro da Ignorância, que sagraria Ramos Rosa com o Prémio Fernando Pessoa, mais nos faz adentrar na ideia de corte na cadeia das mediações, essa cadeia que não é unificadora, mas redutora. Segundo Pascal Fleury, “esta passagem entre as palavras, entre ignorância e ignorância, é o próprio caminho da descoberta”. Na verdade, é des-coberta, é pôr a nu os elos como anéis de interioridade imediata, é chegar ao proto-olhar que possui o dom de tocar e ser tocado, é desenvolver o instinto da palavra guiada pelas palavras que já foram escritas e são agora inscritas na pele do mundo, na sua simplicidade de ser apenas, sem atributos. Em L’Espace Littéraire, afirma Blanchot que “a obra literária não é nem acabada nem inacabada: ela é”. Mas como escrever “é dar-se ao interminável, o escritor que aceita manter-lhe a essência perde o poder de dizer ‘eu’”. A ignorância é correlata desde trabalho de despojamento do eu no trabalho infinito dos dias das palavras. Assim, o olhar a que Robert Bréchon apelida de metonímico, já que vem da pupila, encontra o mundo pré-significativo, o mundo do significante flutuante de Lévi-Strauss. E não é por acaso que a pupila é o lugar do olhar, já que a pupila é rigorosamente um centro vazio, um buraco negro. Este lugar vazado e por isso permissor da entrada do mundo em nós, é também metonímia do eu esvaziado, receptáculo amoroso das coisas prontas a serem tocadas pelas palavras num êxtase sensitivo e de ascese que só é possível pela conquista da ignorância. Esta postura é pouco corrente naquilo a que se costuma chamar “Ocidente”. Mesmo os filósofos têm negligenciado, sistematicamente, o papel do imediatismo. Mas, por exemplo, o filósofo oriental Nargajuna mostra que cada um dos opostos de uma dicotomia é vazio, pois que a sua existência só se pode entender na relatividade de um a outro. O poeta encarnando a acção – o que acontece num elevado grau de crescimento – anula a polaridade e age como se não agisse, escreve como se não escrevesse. Francisco Varela observa que uma tal acção “graças à extensão ou aplicação apropriadas, tornou-se comportamento encarnado, no seguimento de uma longa aprendizagem”. É neste sentido que podemos falar em ignorância: como fruto e não como semente, como prolongamento de uma cadeia que desemboca nos sentires, porque estes estão já tão aprimorados que são o guia imediato para a acção. Fluindo pelos elos da Siris, Ramos Rosa percorre o caminho da unificação até à aurora do espírito incorporado, podendo dizer como Rilke que está no seu “trabalho como o caroço no fruto”.

RP – Creio que esta seja a dimensão da aderência, onde não há mais a cisão representativa. Neste estado pré-categórico, dir-se-ia resultante de uma epoqué fenomenológica, região do Aberto descortinada pelo silêncio e mobilizada por Eros, enfim “o corpo é integrado ao cosmo”, para usar a expressão de António Carlos Cortez. Toda a individuação se esvai ante a força da torrente do devir para que “o poema seja a única entidade real e inteiramente viva”. Este processo de despersonalização para que haja apreensão discreta do fluxo vital está na raiz da poética de Ramos Rosa. E esse percurso unitivo que você menciona tem uma radicação na poesia portuguesa. Essa radicação, em boa parte, se guia por uma reação a Fernando Pessoa. A valorização monumental de Pessoa, em si mesma nada injusta, produziu alguns fenômenos negativos, como o eclipse de alguns bons poetas que lhe eram contemporâneos, caso clássico do grande Mário de Sá-Carneiro. Outro efeito deste fenômeno é a reação das gerações subseqüentes à despersonalização, à pantomima de máscaras que o grande poeta português encenou em sua obra. Tanto que nos dois maiores poetas portugueses atuais, Herberto Helder e António Ramos Rosa, por mais distintas que sejam suas obras, vemos em ambos uma preocupação de unidade conceitual e de figuração. E aqui estou de acordo com a pesquisadora Maria Irene Ramalho, ao dizer que Ramos Rosa dá uma guinada ao processo de “estilhaçamento da consciência” inaugurado por Pessoa, transformando esta relação em um campo de embate. Como assinalou Ana Paula Coutinho Mendes, não se trata de uma nova concepção de heterônimos. Porém, ao contrário do que se possa imaginar, essa unidade não existe à revelia e a despeito da diversidade. O que ocorre é que não nos movemos mais no terreno da heteronímia, mas sim na heterografia, para usar um termo de Michel Foucault, autor que Ramos Rosa chegou a traduzir. Para falar com Deleuze, não mais o inconsciente pensado como teatro, mas sim como usina: intensidades desfiadas e esvaziamento de todo o simbolismo prévio à imanência do próprio texto como agenciador de sentido e produtor de imagens. Assim, é importante lembrar o texto admirável de abertura que Ramos Rosa apôs a Imobilidade Fulminante, com certeza um de seus melhores livros. Nele, partindo da idéia de poesia como alteridade e como segunda voz, colhida em Octavio Paz, o poeta diz-nos que não há nada mais distante do mito de Narciso do que a poesia. A não ser que pensemos em um Narciso morto, submerso nas águas, duplo de si mesmo, aderindo à região indiferenciada que origina todas as formalizações, e em sua morte como princípio necessário à diluição da semelhança em diferença, motor da transformação do eu em flor e primeiro passo para a eclosão da poesia. Seria aí, nessa morte da consciência, apagada, à sombra da qual o devir poético se completa em seu curso de beleza e impessoalidade, que o poeta escavaria sua voz. Não uma voz exclusiva, que remeta a algo de irredutível que nele haja, mas sim uma voz oclusiva, que nascesse do entroncamento de rios e de um acorde composto de todas as vozes que se tramam sob uma só fala. Essa condição em que Ramos Rosa se coloca, da mais altiva e plena humildade, ao reconhecer a impossibilidade mesma de ser poeta sem outros poetas, de escrever um só poema sem que este refaça em seu corpo o percurso de toda uma tradição de poemas, contraria a própria idéia, essencialista e egótica, de originalidade ex nihilo. Assim, Ramos Rosa nem sequer pretende estabelecer uma “fronteira ilusória” entre o que seja “exclusivamente” seu e o que seja dos “poetas que confluem” para a sua produção poética. Crítica radical de todo o psicologismo e a toda metafísica substancialista, essa maneira provinciana que a crítica literária encontrou de se esquivar de sua própria incompetência, ao deixar o criador em estado de impossibilidade, de silêncio, de derelicção, à sombra de sua obra, quase como criatura de sua própria criação, como chega a nos dizer em um poema, ou, como queria, mais uma vez, Maurice Blanchot, como se o poema fosse anterior ao poeta, Ramos Rosa confere à poesia uma dignidade e altitude que poucas vezes na história lhe foram concedidas. Ponto no tecido infinito e impessoal da literatura, canalização de um sopro que lhe precede e que não tem fim, essa é a pobreza, essa é a nudez, esse é o espelho de terra onde a face do poeta se reflete precária e assume sua limitação como condição transcendental necessária para que a poesia exista e o ultrapasse. Esse é também o testemunho do gênio. Não a expressão dos seus sentimentos, mas a fuga deles, como queria Eliot, para que algo mais urgente possa ser dito, em detrimento de tudo o que possamos, seja por meio de artifícios secundários, seja por meio da formalização psicológica a posteriori de uma intensidade, identificar como sendo a voz de quem fala. Para retomar a velha pergunta platônica, quem canta no poeta quando ele canta? António Ramos Rosa diz-nos que muitos. E a segurança que ele tem de sua própria criação lhe retira magistralmente o ônus da vaidade, que quer q todo custo camuflar os bastidores e encenar a sós a sua mentira auto-suficiente.

RAB - Essa questão da heterografia (Foucault) e heteronímia que acabas de recolocar é muito interessante. A auto-intertextualidade (Gérard Genette) de que fala Ana Paula Coutinho Mendes em Mediação Crítica e Criação Poética em António Ramos Rosa relaciona-se umbilicalmente com a ideia que este exprime na entrevista já citada por Paula Cristina Costa, em que afirma que toda a poesia é heteronímia, mas aqui heteronímia é vista em relação ao sujeito poético. Ramos Rosa diz textualmente: “Aliás, a poesia é sempre, como qualquer criação literária, uma heteronímia, não tanto como Pessoa o afirma de uma maneira incontestável, i.e, porque o poeta é um fingidor... mas porque o poeta nunca se exprime e nunca traduz univocamente o que é, porque nunca sabe bem o que é. A escrita é sempre por isso heteronímica porque o sujeito poético nunca se traduz univocamente num poema”. E aqui te encontro quando afirmas que a poética de Ramos Rosa é também uma poética da impossibilidade, fundamental e fundadora. Uma indecisão heteronímica não será o correlato de uma escrita heterográfica, sem que esteja a colocar relações de anterioridade? É certo que a poesia de Ramos Rosa é tecida de vozes e convoca também outras vozes. No primeiro caso, cabe pensar o tipo de relação que este mantém com os poetas que o “influenciaram”. Acho que cabe aqui uma comparação com o momento em que Ramos Rosa, ao ler Lorca em tradução francesa exclama: “E então pensei: mas o Lorca mesmo através de uma tradução francesa é um grande génio espanhol”. E quase logo, na mesma entrevista, por Paula Cristina Costa, adianta Ramos Rosa acerca do poema que escreveu sob o efeito da leitura de Lorca: “tem o génio de Lorca e a sua influência, mas também é meu”. Ora, nós sabemos que Ramos Rosa não tem o menor problema em falar das suas influências, que assume e defende uma posição de “apropriação” relativamente aos poetas e poemas que o impressionaram. Mas, justamente, em que consiste, na sua essência, esta apropriação? Mesmo no caso mais extremo em que toma de assalto alguns versos de um poema de outro, ou quando bebe a sua tónica, é como se transfigurasse o pão em corpo, já que o novo poema passa a pertencer, inequivocamente, ao universo de Ramos Rosa, pois este poeta é pura receptividade transformadora e activa. E, simultaneamente, Ramos Rosa é um poeta da ipseidade, pelo que dá um passo a caminho do outro que o coloca no âmbito da alteridade pura. A relação de intertextualidade deverá incluir este movimento biunívoco em que a escrita se alimenta do outro para se transformar em si, ao mesmo tempo que o poeta se coloca no lugar do tu, radicalmente dialógico. Na revista Foro das Letras de Dezembro de 2004, Ramos Rosa tem um poema inédito em que dialoga com Clarice Lispector. E a propósito deste, e de outros poemas, escreve Paula Cristina Costa que há sempre um tu a quem se dirigem os poemas de Ramos Rosa, um “tu (des)conhecido”. Esta aparente contradição reflecte o facto de que, mesmo quando o tu está explícito, ele expande-se rapidamente a quem possa encarnar o lugar do tu, e logo o poema se desprega da relação dialógica no sentido usual, para se ir ampliando em diálogo aberto ou, pelo contrário, para confrontar um eu poemático com um tu usurpador. Este “tu” pode ser a pátria agrilhoada, como em O Grito Claro os poemas “Poema dum Funcionário Cansado” e “Boi da Paciência”, pode ser a pátria libertada, depois do 25 de Abril, em Ciclo do Cavalo de 1975. É notório que Ramos Rosa ponha em cena duas situações de tanta relevância como o boi (lembremos Carlos Drummond de Andrade, no mesmo sentido) e o cavalo. Em António Ramos Rosa, um Poeta in Fabula - tese de doutoramento de Paula Cristina Costa - apurando qual o lugar e o sentido da fábula na poesia deste autor, a autora encontra também a dimensão dialógica neste teatro de vozes outras, mas convocando hierofanias, ou lugares de irrupção do sagrado. Este lado do maravilhoso, do mito fundador, mais uma vez nos conduz à génese, ao cântico do mundo, para a génese de um eterno recomeço. Acaba de me ocorrer um dos livros de Michel Serres, pois Ramos Rosa é um autêntico Hermes: dialoga com os outros, com o mundo e consigo próprio. Neste diálogo com o mundo, é como se a escrita tornasse visível o verbo e o comunicasse a nós, no sentido de Michel Serres, para o qual comunicar é entendido no sentido físico dos fenómenos de propagação. E, mais uma vez reencontramos os antigos pois, como nota Serres, este conceito leva a considerar o que outrora se chamava “fluídos”. O poeta habita o espaço arcaico e infinitamente aberto do seu corpo. Este corpo é o lugar de passagem entre um eu sempre diferido, sempre a perder-se, para se reinventar no tu que o escreve, ou que o lê (“é assim que Clarice nos lê”). A obra de Ramos Rosa é a Anima do mundo numa espiral que ascende e nos impregna deste movimento, até onde quisermos fazer parte desta aventura de ser, em que a palavra, mais do que “casa do ser”, como em Heidegger, é o ser que cria o espaço de liberdade: o único espaço habitável.

RP – Sim. E só uma poesia de alta densidade de linguagem pode cumprir todas estas etapas do sentido. Sinalizar o silêncio e nascer dele, indicar a criação como sombra mas não se refugiar nela. Habitar espaços abertos e promover a circulação de todos os elementos sob o devir corporal. Propor a liberdade mais radical sob a violação de normas, e fazê-lo com uma ductilidade quase infantil. Ser fluída e interrogar a matéria até sua exaustão, colocando-a em constante aporia. Por todos esses motivos, como lembra Gastão Cruz, é desconcertante saber que os meios de comunicação e a crítica continuem fazendo a apologia de uma hipotética poesia do cotidiano, que sabemos, na maioria das vezes, refém de suas próprias limitações conceituais. Creio que a poesia de António Ramos Rosa possa alterar significativamente o cenário poético brasileiro, ainda muito dominado por questionamentos equívocos. Seja ao ver a linguagem como objeto autônomo, e criar, assim, o império do signo desenraizado da experiência e até mesmo do conceito, da forma mental, da cosa mentale que o engendra, seja ao apelar para a informalidade, que ignora premissas básicas da arte poética e dos seus artifícios, à custa da adesão aos argumentos sociológicos os mais demagógicos e impertinentes, em linhas gerais a matriz do pensamento poético brasileiro ainda deve muito ao positivismo cândido que o fundou. Poeta da liberdade que paira sobre si mesma, do claro enigma da língua absolvida do mistério mas que traz em si candente a sua inscrição residual, talvez a poesia de Ramos Rosa possa dar ensejo a novos caminhos. Mais do que navegar e criar, é preciso viver estas dimensões como tangíveis. Só assim a travessia é possível. E o universo deixa de ser uma ilusão impossível de ser corrigida e passa a ser a matéria mesma de uma poesia que nos abre para tudo o que pode ser criado no momento mesmo em que nos cria. Um reino da reversibilidade, talvez. Onde o mundo possível só o é na medida em que adere ao real, se entranha nele de tal modo que acaba se transformando na interioridade pura de seu movimento. 



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